7.4.07

...da Ilha de...

Quente mesmo, a Ilha do Cabo Quente veio a ficar nos últimos dez, quinze anos, depois do sumiço do vento. – “Mudou tudo!... Cadê as correntes marítimas?... O Sudoeste, frio, sumiu. O ar quente tomou conta!”, as explicações doíam na cabeça desgrenhada do ignaro Agtos. Ela entendia: – “Não fosse isso, seu pai voltaria.” Agtos confirmava: – “Ele sabia tudo de mar!” Sabia... O mar, nos últimos anos, tinha mudado demais. A cidade, também...
Lá de cima, apertando os olhos, Agtos acompanhava a azáfama dos Guardiões do Dique. Contou a Lora, com filial orgulho, como Jónson trabalhou nas primeiras turmas, como ajudou a fazer o (depois inútil) dique do canal de Itajuru. Repentinamente assoreado, o canal teve que ser aterrado e dividido em lotes. Foi quando decidiram construir o Grande Dique, para proteger a parte central da cidade. Para o outro lado, a cidade foi subindo morros na direção das desaparecidas praias do Peró e das Conchas, ondulando seu mar de esfarrapadas casas de plástico reciclado. Uma parte do povo conseguiu lugar, gente que o mar expulsou de São Cristóvão, Palmeiras, Caiçara, Braga... Agtos foi um que se ajeitou no Morro da Antena, antigo Morro do Telégrafo. Os poderosos construíram mansões acima dos costões da ex-Praia Brava, ponto mais elevado da ilha. A maioria, assustada, partiu para as serras (os mais práticos), para Minas (os mais esquentados), para Brasília (os mais esotéricos).
Luta árdua... Dali podia ver o esforço dos trabalhadores para completar o acréscimo de 50cm nos 30km de diques da parte baixa. Faltava pouco, mas podia ser tarde demais: a previsão era de furacões pesados em 2107!... Era melhor acreditar... Tantas cidades invadidas por furacões, com o rompimento de diques, a começar por Nova Orleans, mais de cem anos atrás... Tantas outras, invadidas pela subida do mar, pelo avanço das águas... O desabamento de Veneza, a inundação de Amsterdam... Triste...
Forasteira, Lora ficou nos seus possíveis confortos. Agtos, convocado, apresentou-se aos Guardiões. Por um estirão de dias, encarou a tarefa de reforçar o primeiro molhe, à frente da mureta da antiga praia do Forte. Pedroz, amigo de seu pai, trazia notícias de Lora: – “Trata a todos muito bem. É muito dadivosa...”
O velho Pedroz guardara no preto da pele todas as dobras que reflexos de luz conseguem construir em um rosto... Herdara de avô distante, dos tempos do sal (e de mais longe, de um sofrido povo escravizado), aquela vida trabalhosa, sempre a mando de alguém. Mas também o espírito quilombola!... Mais de 90 anos e ainda vinha, todo dia, animar os Guardiões: – “Sem se resignar!... Vamos cavucar, gente!... Nasci e cresci na Rasa, conheci essa cidade feliz, cheia de turista. Ôxi, vi cada festa de Carnaval! O mar subindo, é que dificultou... Essas beiras de lagoa, as beiradas de praia, até os campos dos Tamoios: as ondas engoliram tudo!... Ah, mas, agüenta!... O dique da cidade agüenta, gente! Qüenta! Firme aí, Agtos!...” Este especulava, se abanando: – “Difícil saber de onde veio tanta água...” Pedroz desconfiava... – “Ué, e não derreteram o pólo Sul e o pólo Norte?” Agtos, como se não visse as escalavradas ruínas do Forte de São Mateus, devolvia uma gota de esperança: – “Ah, a Antártida, não!... Lá ainda tem um bom pedaço de gelo.”
É, mas a esperança de ficar com Lora, essa, diminuía... As notícias eram cruéis (ou mentirosas?). Que passara a noite ajudando Floril, o engarrafador de água, a verter os seus líquidos. Que teria segurado (em público!) a arma de Mark, no plantão do bem provido policial. E que agora andava com Emilitão, o bonitão do pedaço, fazendo-lhe cabeça (Agtos se confundia: ela, seria cabeleireira?...), tronco (fisioterapeuta?...) e membros (ou pu...silânime?...). Até que disseram (aí, ele achou demais!) que Lora seria destaque no Flor do Enrocamento, o bloco da peãozada do dique. Enquanto isso, ele, Agtos, que a resgatara de um duvidoso passado, passaria todo o Carnaval carregando pedra...

Ah, armou!... Não só o cimento da obra, antecipando-se, como também uma rápida e providencial escapulida carnavalesca. Repassou umas rações, prometeu umas tantas futuras cotas de água, até que afinal convenceu Quedão, colega dos mais deprimidos, a trocar a folga. Vestiu uma camisa não listrada, um capote desbotado, um chapéu de feltro branco, uma barba postiça de Papai Noel e saiu por aí... Fantasiado de Estátua de Sal, ninguém, nem mesmo Lora, o reconheceria!